Em continuação à análise do veto presidencial ao art. 11 da
Lei n.º 14.010/20 iniciada na coluna Direito Civil Atual de 06/07/2020, neste
passo, enfrenta-se a questão relativa à extensão dos poderes que se dariam aos
síndicos sobre as áreas privativas. Para tanto, há de se evocar a moderna lição
de Otavio Luis Rodrigues Junior e Jefferson Carús Guedes1:
Sobre essa diferenciação e aquilo a que "o dono do
apartamento pode", é necessário consultar a legislação atual,
especialmente o art. 1.331 do CC/2002, que, em seu caput, afirma ser
lícito, nas edificações, existir partes que são propriedade exclusiva e partes
que são propriedade comum dos condôminos. Os parágrafos do art. 1.331,
considerando-se as lições de Pontes de Miranda, estabelecem: (a) a comunhão no
terreno (fração ideal no solo - § 3.° do art. 1.331 do CC/2002) e nas partes
indivisas do edifício e mais dependências (§2.° do art 1.331 do CC/2002); (b)
não comunhão nas partes pro diviso (§1.º do art. 1.331 do CC/2002). Em
conformidade com a legislação vigente, ter-se-iam:
a) Partes susceptíveis de propriedade exclusiva por uma
pessoa (ou em condomínio geral, por mais de uma pessoa): apartamentos,
escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no
solo e nas outras partes comuns.
b) Partes de utilização comum: solo, a estrutura do prédio,
o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, a
calefação e refrigeração centrais, e as demais partes comuns, inclusive o
acesso ao logradouro público. O terraço de cobertura é parte comum, salvo
disposição contrária da escritura de constituição do condomínio.
Como bem observaram os autores acima, é indispensável
compulsar a legislação atual, atentando, particularmente, para a redação que a
Lei n.º 12.607/122 deu
ao §1º do art. 1.331 do Código Civil. Isso porque essa norma – atinente
às partes de utilização exclusiva – consagra o poder de disposição do
condômino, de tal sorte que possam ser “alienadas e gravadas livremente por
seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser
alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização
expressa na convenção...”.
Retome-se agora a redação da norma projetada no inciso II ao
art. 11. Além do que está previsto no art. 1348, compete ao síndico:
“restringir ou proibir a realização de reuniões e festividades e o uso dos
abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva
dos condôminos, como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação
do coronavírus (Covid-19), vedada qualquer restrição ao uso exclusivo pelos
condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade”.
A interpretação gramatical do inciso II ao art. 11, não dá
espaço para dúvidas. Esclareça-se: a oração “inclusive nas áreas de propriedade
exclusiva dos condôminos” é uma forma apositiva de explicar aquela que a
antecede no que toca ao “uso dos abrigos de veículos por terceiros”. Trata-se
de análise sintática pura e simples.
Mais que isso, a palavra “inclusive” é denotativa de
inserção, pois acrescenta uma explicação em relação ao que já foi escrito.
Aliás, a leitura das partes finais dos incisos I (“respeitado o acesso à propriedade
exclusiva dos condôminos”) e II (“vedada qualquer restrição ao uso exclusivo
pelos condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade”) indicam claramente
que não há diminuição alguma dos poderes que proprietários ou possuidores
diretos têm sobre as unidades autônomas. Ao contrário: o legislador
preservava-as.
Portanto, a sacralidade do direito real não foi profanada
pela letra da lei, tal como havia sido aprovada pelo Congresso Nacional. No
máximo, podia-se conceber uma limitação temporária ao poder de disposição do
condômino – conforme haja previsão na convenção e segundo a discricionariedade
do síndico –, para fins de locação ou comodato em favor de terceiros, sobre o
abrigo de veículos3 que
seja objeto de sua propriedade exclusiva.
Isso não é algo estranho à natureza das relações
condominiais em edifícios. Como ensinam Maluf-Marques4:
“morar em apartamento requer uma grande tolerância em relação aos vizinhos e
importa uma limitação ao direito de propriedade”. Suspendia-se,
temporariamente, a legitimação do condômino para a celebração desses contratos
com pessoas estranhas à relação condominial durante a pandemia por uma questão
de saúde pública. Isso estava em perfeito alinhamento com a norma contida no §
1º do art. 1331 do Código Civil.
Como é amplamente sabido, o síndico é “o administrador da
situação jurídica condominial5”,
em outras palavras, é órgão executivo do condomínio6 e
tem poderes de administração fixados no rol taxativo dos nove incisos ao art.
1348 e estes podem ser regulamentados pela convenção7,
ou ainda pela assembleia.
É verdade que o RJET dava novos poderes de polícia8 ao
síndico enquanto houvesse pandemia, mas, de qualquer modo, uma leitura mais
abrangente (em sentido amplíssimo) dos arts. 1277 a 1279 do Código Civil,
tornava perfeitamente aceitável – em caráter transitório – o aumento desses
poderes, em consonância com a medida sanitária, afinal o síndico há de zelar
pelos interesses comuns dos condôminos, inclusive no que toca ao sossego e à
saúde.
Além disso, a interpretação teleológica do art. 11 do PL
1179/20 não implica modificação ou diminuição do conjunto de poderes que
integra o direito de propriedade. Isso é evidente à medida que
o caput do art. 1º e o art. 2º do Projeto de Lei cuidam da
instituição de normas legais emergenciais, transitórias e desprovidas de
eficácia revogadora ou alteradora.
O legislador apenas ampliou os poderes discricionários do
síndico para que se adotem práticas compatíveis com a desaceleração do contágio
pelo Coronavírus enquanto durar a pandemia. Esse é o único fim da norma. As
razões do veto são infundadas e decorrem, como quer parecer, de uma leitura
desatenta do texto aprovado pelo Legislativo.
Com grande sabedoria o Prof. João Batista Lopes9 qualifica
o condomínio edilício como “verdadeira sementeira de discórdias” e no regime
transitório e emergencial não seria diferente. Deve-se reconhecer, a título de
conclusão, que é absolutamente natural o RJET ter críticos e adversários.
Arrisca-se até a ousadia de se dizer que isso é saudável, notadamente quando
essas críticas deitam raízes em argumentos tecnicamente sólidos, o que não é o
caso do veto ao art. 11, pelos motivos acima aludidos.
Insista-se: a “intenção do legislador é conter a propagação
do Coronavírus10”
e não reformar os institutos da propriedade e dos condomínios edilícios, muito
menos cercar-se de meias-verdades para selecionar um ideário político
discrepante do Código Civil e da Constituição Federal. Urge, portanto,
derrubar-se o veto presidencial.
Acesse a parte 1 do artigo aqui.
Fonte: Consultor Jurídico