Um belo dia os pais decidem doar seu imóvel a seus filhos,
reservando usufruto (geralmente vitalício) e isso pode ser na intenção de
evitar um futuro inventário na medida em que desde já o imóvel já teria sido
doado aos prováveis herdeiros.
A boa intenção pode até ser legítima e tudo isso pode, mesmo
sem orientação especializada, ser feito, direto num Cartório de Notas com a
lavratura da Escritura Pública pelo Tabelião de Notas, seguindo o registro no
Cartório de Imóveis. Porém o problema pode exsurgir anos depois, com o
falecimento, dos doadores, por ocasião da exigência do Registro de Imóveis pelo
recolhimento do “restante” do imposto devido.
Teria sido então um bom negócio então a transmissão em vida
do bem imóvel aos descendentes através da realização da Escritura de Doação com
Reserva de Usufruto?
Da responsabilidade do registrador pela verificação do
recolhimento dos impostos nos atos praticados
Por Lei cabe ao Registrador de Imóveis fiscalizar o
recolhimento de tributos dos atos que praticar, sob pena de responder
solidariamente pelo recolhimento. Assim reza o art. 289 da Lei de Registros
Públicos:
Art. 289. No exercício de suas funções, cumpre aos
oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos
devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício.
Neste sentido a já árdua tarefa do Registrador, tributado
vorazmente pelo Fisco por sua atividade delegada pelo Estado[i] pode
se agravar caso deixe de fiscalizar o recolhimento do Imposto – sendo oportuno
lembrar que a fiscalização tributária é só mais uma das tarefas que o
Delegatário tem por obrigação exercer, graciosamente, para o Fisco – sem
receber um só vintém por isso – da mesma forma como tem que fiscalizar a
realização da Declaração pelas Operações Imobiliárias – DOI e tantas outras
comunicações que a gente não vê por trás do “carimbaço” e acontecem nos
bastidores…
No Estado do Rio de Janeiro, especificamente, consta ainda
da atual Lei Tributária relativa ao ITD (ou ITCMD, como queira), Lei
7.174/2015, determinação expressa (art. 11, inc. II) que os Registradores
(assim como os Notários) são obrigados solidariamente ao pagamento do crédito
tributário devido pelo contribuinte ou responsável em relação aos atos
praticados por eles ou perante eles, em razão de seu ofício, nas hipóteses em
que não exigirem o cumprimento do disposto na legislação tributária.
É importante salientar ainda, neste aspecto, que a
fiscalização do Registrador no caso em questão deve se ater a verificar se foi
recolhido o imposto (ou se foi certificado pela Fazenda Credora não incidência
ou isenção) e não se o recolhimento está correto. Neste sentido mansa e
pacífica jurisprudência do TJSP:
CSM/SP. TJSP. 0031287-16.2015.8.26.0564. Registro de Imóveis
– Dúvida inversa – Escritura de Doação – Desqualificação – Manutenção da
exigência pelo MM. Juiz Corregedor Permanente – Discussão a respeito da base de
cálculo a ser utilizada no cálculo do ITCMD – Atuação que extrapola as
atribuições do registrador – Dever de fiscalização que se limita ao
recolhimento do tributo – Recurso provido para julgar improcedente a dúvida e
determinar o registro do título.
Da escritura de doação com reserva
A doação com reserva de usufruto faz-se através de Escritura
Pública em qualquer Cartório de Notas. Aqui – diferentemente da questão da
competência territorial cravada para o registro, ditada pela Lei Federal nº.
6.015/73 para os atos registrais imobiliários (art. 169) – pelo menos no que
diz respeito à forma tradicional e secular de lavratura de Atos Notariais,
ainda em papel[ii] –
poderá ser escolhido qualquer Cartório de Notas para a lavratura, independente
da localização do bem (arts. 8º e 9º da Lei 8.935/94).
É bom ressaltar que a novíssima e louvável regra editada
pelo CNJ para atos eletrônicos procura resolver um ponto muito polêmico sobre
a competência para a lavratura de atos notariais eletrônicos. Reza o
art. 19 do Provimento CNJ 100/2020:
Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do
imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade,
lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização
de videoconferência e assinaturas digitais das partes.
§1º Quando houver um ou mais imóveis de diferentes
circunscrições no mesmo ato notarial, será competente para a prática de atos
remotos o tabelião de quaisquer delas.
§2º Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação
do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas
da unidade federativa para a lavratura do ato.
§3º Para os fins deste provimento, entende-se por
adquirente, nesta ordem, o comprador, a parte que está adquirindo direito real
ou a parte em relação à qual é reconhecido crédito.
A Lei Tributária Estadual vigente ao tempo do fato gerador
ditará qual é a alíquota e a base de cálculo aplicáveis ao caso em tela, além
de outros aspectos. No Estado do Rio de Janeiro a questão ainda está agitada
sendo importante recordar que o ITD era tratado no Decreto-Lei 05/1975 (Código
Tributário do Estado do Rio de Janeiro), vindo posteriormente a ser tratado
pela Lei Estadual 1.427/89 que por sua vez foi revogada pela última e atual Lei
Estadual 7.174/2015.
Depois de muitos questionamentos sobre a necessidade ou não
do recolhimento do imposto na hipótese de extinção do usufruto por falecimento
do usufrutuário houve a edição pelo Conselho da Magistratura do Enunciado nº.
07, através do AVISO CGJ 1.058/2014 (D.O. de 05/08/2014), que versava:
7. A extinção do usufruto por renúncia ou morte do
usufrutuário não é fato gerador da cobrança do ITD, sob pena de incorrer em
bitributação, vez que a doação do imóvel constitui fato gerador do imposto de
transmissão inter vivos.
Ainda na vigência do referido Enunciado os questionamentos
sobre a necessidade do recolhimento do tributo na hipótese aqui retratada não
minguaram de modo que em deliberação do Conselho da Magistratura em sessão de
julgamento realizada no dia 11/07/2019, por votação unânime, o referido verbete
foi cancelado.
Mas efetivamente, a extinção de usufruto é motivo para
recolhimento de mais imposto?
Não nos parecer ser legítima a exação na hipótese de
extinção de usufruto e ousamos assim entender ainda que a Lei Tributária
tipifique a incidência in casu.
Data vênia, na extinção do usufruto por morte não nos parece
ocorrer a transferência de qualquer direito real. Em verdade, o que
se tem é o desaparecimento, reconhecido expressamente pela Lei civil, da
garantia.
O que de fato ocorre no caso é a mera consolidação do
domínio na pessoa do nu-proprietário.
É que enquanto pactuado o usufruto temos a cessão
transitória de alguns dos atributos da propriedade, sem representar, com isso
qualquer transferência do domínio ou do próprio direito real,
de forma que a sua extinção, seja por morte, seja por renúncia, importará
apenas na consolidação da plena propriedade nas mãos do nu-proprietário. Assim,
sem transmissão de direitos, não há que se falar em fato gerador para fins de
incidência do ITD.
A propósito, o conceito de Usufruto lapidado pelo digno
Registrador Paulista Ademar Fioranelli[iii] deve
ser colacionado:
“Usufruto é uma constituição de direito real sobre o
imóvel, portanto limitativo da propriedade, figurando de um lado o proprietário
com poder de disposição e, de outro, o usufrutuário com os poderes de uso e
gozo”.
Complementa a ideia a lição do ilustre Desembargador
Aposentado do TJSP, atualmente Advogado, Dr. Carlos Roberto Gonçalves[iv]:
“Caracteriza-se o usufruto, assim, pelo desmembramento,
em face do princípio da elasticidade, dos poderes inerentes ao domínio: de um
lado fica com o nu-proprietário o direito à substância da coisa, a prerrogativa
de dispor dela, e a expectativa de recuperar a propriedade plena pelo fenômeno
da consolidação, tendo em vista que o usufruto é sempre temporário; de outro
lado, passam para as mãos do usufrutuário os direitos de uso e gozo, dos quais
transitoriamente se torna titular.
Passa a existir, destarte, a coexistência harmônica dos
direitos do usufrutuário, concernentes à utilização e fruição da coisa, e dos
direitos do proprietário, que os perde em proveito daquele, conservando todavia
a substância da coisa e a condição jurídica de nu-proprietário”.
Da situação atual
Até o presente momento, ao que parece a melhor orientação a
ser seguida é aquela inaugurada quando do procedimento de Dúvida
Registral nº 0316851-09.2018.8.19.0001, julgado em 12/09/2019 pelo Egrégio
Conselho da Magistratura do TJRJ, sob a relatoria da ilustre
Desembargadora Elisabete Filizzola, onde, didaticamente foram traçadas
linhas sobre como proceder na hipótese em testilha, que por sua clareza merecem
ser prestigiadas:
Cabe ao interessado obter do Fisco a declaração de não
incidência ou isenção tributária antes de requerer ao Oficial o cancelamento
do direito real,
sem o que será legítima a formulação da correspondente exigência.
A exigência de complementação do ITD ou comprovação de sua
isenção/não incidência será sempre legítima, seja porque i) o imposto é mesmo
devido (pretérito recolhimento de apenas parcela), seja porque ii) cabe só à
Fazenda declarar-lhe a isenção ou não incidência, e não ao Oficial (cf. art.
48, § 1º, LODJ).
É importante registrar também que tramita no Órgão Especial
do TJRJ a Representação de Inconstitucionalidade n?. 0008135-40.2016.8.19.0000,
cujo objeto é a constitucionalidade de dispositivo legal usado como fundamento
para a cobrança do imposto aqui tratado e em decisão de 10/06/2019 houve por
bem ao Colendo Órgão julgar PROCEDENTE EM PARTE o pedido para declarar a
inconstitucionalidade, dentre outro, do artigo 42 da atual Lei Estadual nº.
7.174/2015. Importante anotar que pende até esta data julgamento de um REsp e
um RE na discussão.
Por fim, necessário ressaltar que exigências exaradas pelo
Registrador, reputadas incabíveis pelo interessado, devem ser desafiadas pela
medida específica prevista no art. 198 da Lei registrária, que no caso do Rio
de Janeiro desaguará, em reexame necessário e obrigatório no Conselho da
Magistratura – porém, por tudo que foi dito, entendemos que o Registrador
estará correto em dar cumprimento ao art. 289 da Lei Registral exigindo o
pagamento do tributo ou a certificação da isenção ou não incidência pela
Fazenda – sendo cabível, pelo interessado, evidentemente, em face do Secretário
de Estado de Fazenda, uma vez ofendido seu direito líquido
e certo, na espécie, o Mandado de Segurança para fins de alcançar o registro.
Fonte: Jornal Contábil