A Medida Provisória 959, publicada em edição extra do Diário
Oficial da União no último dia 29, adiou a entrada em vigor da Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD) para 3 de maio de 2021. A prorrogação da LGPD já
estava em pauta no Congresso Nacional. O Projeto de Lei 1.179/2020, que previa
a ampliação da vacatio legis da lei para 1º de janeiro de 2021 e
das sanções para agosto do próximo ano, foi aprovado no Senado Federal em 3 de
abril e seguiu para a Câmara dos Deputados no dia 13. Muito provavelmente, a
discussão a respeito da prorrogação do prazo e do adiamento das sanções terá
lugar quando da apreciação da medida provisória pelo Congresso.
Infelizmente, em momento tão peculiar para a sociedade, com
o advento da pandemia da Covid-19 e o intenso debate sobre a utilização de
dados pessoais para fins de monitoramento, com vistas ao auxílio no combate ao
coronavírus, o Brasil ainda não possui uma Lei de Proteção de Dados em vigor,
tampouco conta com sua autoridade nacional a respeito da matéria.
O Judiciário, no entanto, já vem sendo instado a julgar inúmeras
ações que têm por objeto justamente o questionamento sobre a utilização de
dados pessoais no contexto da pandemia. Citem-se como exemplo as cinco Ações
Diretas de Inconstitucionalidade [1] recebidas pelo STF contra a Medida
Provisória 954/2020, que prevê o compartilhamento de dados de usuários por
prestadoras de serviços de telecomunicações com a Fundação Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). A MP 954 visa a possibilitar a produção
estatística oficial, por meio de entrevistas em caráter não presencial no
âmbito de pesquisas domiciliares durante a pandemia. Os dados a serem
compartilhados pelas operadoras são a relação dos nomes, dos números de
telefone e dos endereços dos consumidores, pessoas físicas ou jurídicas.
Alguns argumentos utilizados nas ações foram: a) a violação
dos dispositivos constitucionais que asseguram a dignidade da pessoa humana, a
inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, o sigilo
dos dados e a autodeterminação informativa; b) ausência dos pressupostos
constitucionais de relevância e urgência para tratamento da matéria por meio de
medida provisória; c) ausência de vínculo entre a finalidade para a qual os
dados serão utilizados e a situação de emergência de saúde pública, não havendo
esclarecimento do motivo para o compartilhamento de dados; d) não demonstração
da forma pela qual os dados seriam adequados e necessários, não havendo também
delimitação do campo de proteção na operação de processamento de dados; e) não
razoabilidade da MP, vez que a pesquisa estatística é realizada por amostragem,
não sendo necessários os telefones e endereços de todos os clientes das operadoras,
permitindo uma concentração imensa de informações no Estado referentes não só
ao indivíduo, mas também à coletividade, podendo levar a interferências
ilegítimas sobre os cidadãos [2].
A ministra Rosa Weber, relatora das ações, deferiu medida
cautelar na ADI 6387, no último dia 24, suspendendo a eficácia da Medida
Provisória 954/2020 e determinando a tramitação conjunta das demais Adis, com a
reproduc¸a~o da decisão proferida nos respectivos autos. Interessante notar que
entre os fundamentos utilizados pela ministra e nos esclarecimentos trazidos
pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), instada a se manifestar nos
autos, encontram-se inúmeras citações à LGPD, tanto diretas como indiretas,
pela invocação de seus princípios e diversos conteúdos de seus dispositivos.
De fato, na decisão a ministra reconhece que "o
respeito a` privacidade e a` autodeterminação informativa foram positivados, no
artigo 2º, I e II, da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais), como fundamentos específicos da disciplina da proteção de dados
pessoais" [3].
Destaca ainda que a Medida Provisória nº 954 não
delimita o objeto da estatística a ser produzida, a finalidade especifica e a
amplitude. Além disso, a ministra ressalta que, ao não definir de forma clara
como e para que serão utilizados os dados coletados, "a MP
nº 954/2020 não oferece condições para avaliação da sua adequação e
necessidade, assim entendidas como a compatibilidade do tratamento com as
finalidades informadas e sua limitação ao mínimo necessário para alcançar suas
finalidades" [4].
Aponta também que "a MP nº 954/2020 não
apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais
de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida, seja
na sua transmissão, seja no seu tratamento" [5].
Por fim, a ministra destaca que tal situação é agravada
pelo fato de ainda não estar em vigor a LGPD, que define os critérios para a responsabilização
dos agentes por danos ocorridos em virtude do tratamento de dados pessoais [6]. A Anatel, em sua manifestação nos autos,
recomendou a adoção de medidas para garantir princípios estabelecidos na Constituição
Federal, na Lei Geral das Telecomunicações e na Lei Geral de Proteção de Dados,
mediante:
"a) a sólida instrumentalização da relação jurídica que
será´ estabelecida entre o IBGE e cada uma das prestadoras de serviços de telecomunicações
demandadas; b) a delimitac¸a~o especifica da finalidade do uso dos dados
solicitados [7]; c) a limitação das solicitações ao
universo de dados estritamente necessários para o atingimento da
finalidade [8]; d) a delimitação do período de uso e da
forma de descarte dos dados [9]; e) a aplicação de boas práticas de segurança,
de transparência e de controle [10]".
Enfim, embora sua entrada em vigor tenha sido novamente
adiada, os princípios e dispositivos da LGPD vêm sendo reconhecidos pelo
Judiciário pátrio como fundamentos acessórios em suas decisões. Além disso, o
direito à privacidade e à proteção de dados pessoais já se encontra em inúmeras
outras leis esparsas, inclusive na legislação consumerista. Os órgãos de Defesa
do Consumidor têm atuado de forma bastante contundente na solicitação de
esclarecimentos a empresas suspeitas de violar a privacidade dos seus
consumidores, bem como aplicado severas multas.
Por outro lado, numa pesquisa divulgada pela Cisco em
janeiro de 2020 [11] a
respeito do dos investimentos das empresas em privacidade, a maioria das
organizações revelou obter retornos bem positivos, sendo que 40% apontam
benefícios de no mínimo o dobro dos seus gastos. Elas identificam redução de
perdas com violações de dados, maior eficiência operacional com o controle dos
dados e a construção de lealdade e confiança com seus consumidores, além de
tornar a companhia mais atrativa para investidores.
Nesse contexto, a adequação à LGPD, além de uma premente
necessidade, é sem dúvida uma vantagem competitiva para as empresas. A proteção
da privacidade e dos dados pessoais é certamente um investimento crucial para
aquelas sociedades que pensam no seu futuro a médio e longo prazo.
Fonte:
Consultor Jurídico