Os direitos ao devido processo legal, ao contraditório e à
ampla defesa não podem ser considerados privilégios. De igual modo, não cabe atropelar
o princípio constitucional da presunção de inocência em nome do combate à
criminalidade, e nem mesmo à corrupção.
A presunção de inocência é garantia de todas as pessoas e
ganha vida na figura de cada suspeito, acusado e mesmo condenado, desde que não
definitivamente, não admitindo castigo sem a certeza jurídica de uma decisão
condenatória que não possa mais ser modificada por recursos. Punir alguém pela
prática de um crime é o limite extremo da violência que o Estado está
autorizado a praticar.
O castigo afeta a pessoa castigada, sua família, o círculo
social em que está inserida e transforma a vida da comunidade, pois envia uma
mensagem à sociedade acerca do que é considerado legal e ilegal pelos tribunais
do ponto de vista criminal. Essa mensagem não pode ser ambígua, tampouco
emocional.
Por isso que, sob a garantia jurídica da presunção de
inocência, é inadmissível a prisão como forma de antecipação da tutela penal. A
certeza dos tribunais não é produzida em fatias, parceladamente, um pouco pelo
juiz, outro tanto pelos desembargadores e mais uma parte pelos ministros dos
Tribunais Superiores. Esta segurança para castigar alguém decorre de uma
decisão política dos Constituintes de 87/88 que, com os olhos firmes na
experiência brasileira da apuração de crimes e punição das pessoas e a partir
de critérios consolidados nas democracias contemporâneas, fixaram marco
objetivo para dizer que, a partir desse ponto, sim, é legítimo punir.
E deputados e senadores constituintes deliberaram que o
castigo depende de transitar em julgado a condenação, o que significa dizer que
não deverá mais caber recurso contra a condenação, quer ela advenha de um juiz
de primeira instância, quer seja imposta por tribunal ainda que superior.
Não se trata de excepcionalidade brasileira. Em Portugal e
na Itália é assim, mas convém chamar atenção para o fato de que na Europa como
um todo e também na América Latina o respeito à presunção de inocência
configura dogma que batiza o sistema de justiça como compatível com o Estado de
Direito.
Não custa lembrar que o Tribunal Europeu de Direitos
Humanos, quando afugenta decisões contrárias à presunção de inocência tomadas
pelos tribunais superiores de alguns países, como recentemente nos processos
Zang vs Ucrânia (13.11.2018) e Kangers vs Letônia (14.03.2019), mostra que
temas como a prova do crime e a validade das leis do Estado não se esgotam em
instâncias ordinárias como juízes e tribunais de apelação.
Esse pretenso fatiamento dos assuntos é juridicamente
inviável, porque julgar um crime é julgar a constitucionalidade de como as
provas foram obtidas, da razoabilidade dos argumentos condenatórios à luz da
Constituição, dos limites da acusação e tantos outros que no Brasil são temas
da competência constitucional do Supremo Tribunal Federal.
Por isso deve ser saudada a recente decisão do Superior
Tribunal de Justiça, que reafirmou a presunção de inocência e separou o legal
do ilegal, e o poder, do abuso do poder.
Em cirúrgico voto proferido no julgamento do Habeas Corpus
n.º 509.030 – RJ, em que, por unanimidade, foi restabelecida a liberdade do
ex-presidente Michel Temer, o ministro Nefi Cordeiro observou que “a prisão
definitiva se dá pela admissão da culpa penal. Antes, a prisão é excepcional no
sistema acusatório buscado pela Constituição Brasileira e marcado em estados
democráticos. Não se prende durante o processo porque aparente a culpa,
prende-se provisoriamente por riscos ao processo ou à sociedade, taxativamente
elencados em lei”.
Este julgamento, em que pesem as medidas cautelares, evidenciou,
ainda mais, a necessidade de refletir sobre a importância da imparcialidade na
nobre função abraçada pela magistratura, com frequência incitada por uma
plateia ávida por “justiçamentos” e por uma ação cada vez mais moralizadora e
menos técnica.
Não é sem razão que o Pacto de São José da Costa Rica (art.
8.º, I) dispõe que toda pessoa tem direito a ser julgada por um juiz ou
tribunal competente, independente e imparcial. Infelizmente, no Brasil de hoje,
a realidade é distinta.
Sobre a indispensável imparcialidade, mais uma vez Nefi
Cordeiro, em seu magistral voto, destacou que o “juiz criminal deve conduzir o
processo pela lei e Constituição, com imparcialidade e, somente ao final do
processo, sopesando adequadamente as provas, reconhecer a culpa ou declarar a
absolvição. Juiz não é símbolo de combate à criminalidade, é definidor da culpa
provada, sem receios de criminosos, sem admitir pressões por punições
imediatas. Cabem as garantias processuais a qualquer réu, rico ou pobre,
influente ou desconhecido, e centenas, milhares de processos são nesta Corte
julgados para permitir esse mesmo critério a todos. O critério não pode mudar
na imparcialidade judicial”.
Presunção de inocência e imparcialidade judicial são irmãs
siamesas.
Conquanto a situação de Michel Temer seja diferente da do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, notadamente quanto ao estágio de
julgamento dos recursos, é difícil não reconhecer os altos padrões de
seletividade da Justiça Brasileira. Temer estava preso por força de prisão preventiva,
e o segundo, embora condenado, está preso aguardando decisão sobre recurso
extraordinário interposto ao STF.
Em ambos os casos não há decisão condenatória definitiva e a
prisão era (Temer) e é (Lula) provisória, não importa o esforço argumentativo
para dizer que no caso do ex-presidente Lula é um “provisório-definitivo” ou
“mais ou menos provisório, mais ou menos definitivo”. No Direito e na
Constituição essa diferença não existe.
Na prática, no mundo real e midiático, em ambos os casos o
princípio da presunção de inocência foi mitigado, sendo que para Temer houve
uma correta reparação em tempo hábil. Para Lula, entretanto, a prisão perdura
há mais de um ano de forma flagrantemente injusta e injustificada. Parece que
Lula é um “igual a todos, mas diferente”.
Note-se, ainda, que Temer foi julgado por juízes imparciais.
Lula foi julgado e condenado pelo atual ministro da Justiça, Sérgio Moro,
confesso adversário político de Lula. Vale frisar, governo ao qual o ministro
da Justiça serve enquanto, nas palavras do presidente da República, aguarda
surgir vaga de ministro no STF. Não há país democrático que reconheça
imparcialidade em uma situação semelhante à do adversário Moro condenando o
líder oposicionista Lula.
Jean Genet, na peça O Balcão, profetiza o sentimento
que acompanha as decisões judiciais como essa. Se ao Lula não pudessem ter sido
imputados crimes descomunais, não estaríamos diante de “juízes descomunais”.
Este é o verdadeiro enredo da perseguição selvagem que promoveram: no vazio
existencial, a busca de protagonismo e de significância. A história,
entretanto, não costuma ser generosa. Quem se recorda do carrasco de
Tiradentes?
Tristes, sombrios e assustadores tempos. Mas também em
alguma medida tempos de generosa esperança, quando testemunhamos brotarem
decisões que resgatam a presunção de inocência. Por tudo, em nome do Estado de
Direito – adversário ou não, “amigo” ou “inimigo” – todos, absolutamente todos,
devem se postar na mesma trincheira em defesa da democracia, do respeito à
dignidade da pessoa humana e do Estado de Direito.
O que pode nos unir, hoje, é, segura e certamente, muito
maior do que o que nos divide.
*Leonardo Isaac Yarochewsky, advogado e Doutor em Ciências
Penais (UFMG), membro do Ibccrim; Marco Aurélio de Carvalho, advogado
especializado em Direito Público e membro da ABJD e do Grupo
Prerrogativas; Geraldo Prado, professor de Direito da UFRJ
Fonte: Estadão