1. Uma breve introdução necessária à compreensão do tema
Para dizer o óbvio, vivemos uma fase de rápidas e profundas
mudanças em termos de Direito de Família que decorrem de rápidas e profundas
mudanças de costumes e de hábitos sociais que decorrem de um século XXI
alucinante. Se a noção de tempo deixou de ser a mesma em razão de uma
possibilidade de aproveitamento infinitamente maior da vida (graças à
tecnologia), é também um momento de angústia para o ser humano que vê o
conhecido passado sendo solapado com rapidez por um futuro assustador,
desconhecido e de insegurança. Futuro que, de repente, já chegou.
Esse “futuro” é um tempo de celeridade, de facilidade, de
desburocratização e novos paradigmas sociais, quer aceitemos ou não. Com o
Direito de Família não poderia ser diferente.
Vejamos essas mudanças “desburocratizantes” que já foram
implementadas no século XXI. Quanto à parentalidade, o TJ-PE, por meio de
provimento de autoria do desembargador Jones Figueiredo Alves (Provimento 9 de
2013), admitiu o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva, sem
a necessidade de sentença para tanto. Basta, pelo provimento, a declaração pelo
interessado que se assume pai afetivo de alguém. O provimento foi bastante
elogiado pela desburocratização e, muito posteriormente, o CNJ regulamentou a
questão no Provimento 63 de 2017.
Na conjugalidade, o TJ-PE, de maneira pioneira, disciplinou
a possibilidade de pacto antenupcial para as pessoas que devem se casar pelo
regime de separação obrigatória de bens (artigo 1.641 do CC). O Provimento 6 de
2016, novamente da lavra do desembargador Jones Figueiredo Alves, permite que
se adote a separação total de bens para que se evite a incidência da Súmula 377
do STF. Isso afasta todas as questões tormentosas que a súmula tem gerado (há
necessidade de prova do esforço comum?).
Ainda, na conjugalidade, foram os diversos tribunais de
Justiça (em sua maioria da região Nordeste do Brasil) que alteraram suas normas
de maneira a admitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, muito antes de o CNJ
o admitir por meio da Resolução 175 de 2013. Não nos esqueçamos que não há no
Código Civil nenhum artigo que trate do tema. Os casamentos ocorrem por decisão
do CNJ, e não do parlamento.
Assim, antes mesmo de o CNJ regulamentar o tema para todo o
Brasil, tínhamos a admissão de casamento homoafetivo por força de orientação
dos tribunais de Justiça:
• Paraná:
instrução da Corregedoria de 26 de março de 2013;
• São Paulo:
provimentos CGJ 41/12 e 06/13, que alteram o Provimento 58 de 1989;
• Mato
Grosso do Sul: provimento 80, de 2 de abril de 2013, que alterou o Código de
Normas;
• Sergipe:
Provimento 6, de 5 de julho de 2012;
• Piauí:
Provimento 24, de 14 de dezembro de 2012;
• Bahia:
Provimento Conjunto CGJ/CCI – 12/2012, de 4 de outubro de 2012;
• Alagoas:
Provimento 40, de 6 de dezembro de 2011;
• Espírito
Santo: Ofício Circular 59/12.
Fato é que há muito tempo o Congresso brasileiro deixou de
legislar em matéria de família. É a jurisprudência que tem dado a roupagem do
atual Direito de Família, com base em procedimentos administrativos dos
tribunais de Justiça e do CNJ.
2. E o divórcio como fica nesse momento histórico?
Com o advento da Lei 11.441/2007, tornou-se possível no
Brasil o divórcio administrativo ou extrajudicial em cartório, desde que
inexistissem filhos menores ou incapazes e as partes estivessem em acordo.
E quem regulamentou a Lei 11.441/07? O CNJ, em sua Resolução
35. Não houve reclamações na época, mesmo porque essa resolução, de maneira
contra legem, mantém no sistema a figura da separação judicial, o que interessa
aos setores mais retrógrados do Direito de Família.
A alteração legislativa restringiu a intervenção do Estado
na vida privada das pessoas, na medida em que possibilitou que os inventários e
os divórcios consensuais, sem filhos menores ou incapazes, não necessitavam
mais se submeter à tutela prévia do Poder Judiciário, já combalido e
assoberbado com tantas demandas judiciais.
E é lógico que seja assim. Se não se exige prévia
intervenção judicial para o casamento, por que razão haver-se-ia de exigir tal
intervenção para dissolução do vínculo conjugal. Tanto a constituição do
vínculo como o seu desfazimento são atos de autonomia privada e como tal devem
ser respeitados, reservando-se a tutela estatal apenas para hipóteses
excepcionais.
Entretanto, para que os cônjuges possam lavrar a escritura
de divórcio, precisam entrar “em acordo”. O artigo 733 do CPC atual prevê que
somente o “divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual
de união estável poderão ser realizados por escritura pública”. Portanto, as
regras legais atuais exigem que a escritura seja subscrita obrigatoriamente por
ambos os cônjuges, e isso nem sempre é possível. Um dos cônjuges pode se negar
a concordar com o pedido de divórcio até mesmo por capricho ou por receio de
uma atitude violenta do outro. Também são comuns as situações em que um dos
cônjuges se encontre em local incerto e não sabido.
Para superar essas dificuldades, que impedem o pleno
exercício do direito fundamental de dissolver o casamento, surgiu uma nova
modalidade de divórcio administrativo, que independe de escritura pública e
pode ser requerida diretamente ao RCPN, de forma unilateral por qualquer dos
cônjuges, ainda que com a oposição do outro: o chamado “divórcio impositivo” ou
“divórcio direto por averbação”. Defende-se, por meio desse novo instrumento, a
possibilidade de atribuição da faculdade a um só dos cônjuges de requerer,
perante o registro civil, em cartório onde lançado o assento do seu casamento,
a averbação do seu divórcio, à margem do respectivo assento[1].
Esse requerimento de divórcio direto, por averbação, seria
facultado somente àqueles que não tenham filhos menores ou incapazes nem
estejam em estado gravídico, observando-se, assim, os requisitos gerais do
artigo 733 do CPC e afastando qualquer pecha de ilegalidade. A averbação deve
ser feita pelo registrador civil independentemente da presença ou da anuência
do outro cônjuge, que seria apenas notificado, para fins de prévio conhecimento
da averbação pretendida, vindo o oficial do registro, após efetivada a
notificação pessoal, proceder com a devida averbação do divórcio.
O “divórcio impositivo” foi previsto em provimento pioneiro da
Corregedoria-Geral de Justiça de Pernambuco, aprovado em 13 de maio de 2019
(Provimento 6/2019), visando estabelecer medidas desburocratizantes ao registro
civil, nos casos do divórcio, por ato de autonomia de vontade de um dos
cônjuges[2]. Novamente, Pernambuco sai à frente do Brasil.
Ora, o divórcio, desde o advento da Emenda Constitucional
66/2010, deixou de ser um direito subjetivo comum, ainda que dotado de
fundamentalidade, para se transformar em um direito potestativo, contra o qual
nem o outro cônjuge nem o Estado-juiz podem se opor. Requerida judicialmente a
dissolução ou desconstituição do vínculo por um dos cônjuges, o outro não pode
se opor ou contestar, mas somente se sujeitar. O direito de pedir o divórcio
não pode ser violado, pouco importam as razões do inconformismo do outro
cônjuge. A contestação ou discordância daquele contra quem for deduzido o
pedido de divórcio não possui qualquer relevância nem pode obstar a prolação do
decreto de dissolução do vínculo. Daí a natureza de direito fundamental
potestativo. Assim, não faz sentido que um simples pedido de divórcio, que não
é passível de “contestação”, fique a depender da chancela judicial somente
porque um dos cônjuges, por qualquer razão, não se dispõe a comparecer perante
o tabelião de notas.
O provimento do TJ-PE de autoria do desembargador Jones
Figueiredo Alves promove a desjudicialização absoluta do divórcio e afasta, em
boa hora, uma situação paradoxal, quando a falta de consenso impunha a
inexorável (e desnecessária) judicialização do divórcio.
Ressalte-se, por fim, que o pedido de divórcio direto por
averbação fica restrito, exclusivamente, à dissolução do vínculo, sem
possibilidade de cumulação de qualquer outra providência. Outras questões, como
alimentos, partilha de bens, medidas protetivas etc., devem ser judicializadas
e tratadas no juízo competente, porém com a situação jurídica das partes já
estabilizada e reconhecida como de pessoas divorciadas. Ou seja, a averbação do
divórcio não repercute em nenhum outro direito patrimonial ou existencial. Só
evita que a pessoa se veja compelida a postular uma providência judicial que
não tem qualquer outra função senão a de dissolver o vínculo. Por isso, não
existem riscos aos direitos do outro cônjuge que eventualmente discorde do pedido
de divórcio. Da mesma forma que não há repercussões negativas para a atividade
notarial, pois quem ostenta legitimidade para requerer a averbação unilateral
do divórcio não poderia fazê-lo por escritura pública, à falta de anuência do
outro. A competência exclusiva dos tabeliães de notas, conforme determina o
artigo 7º da Lei 8.935/94, para lavrar escrituras públicas de separação e
divórcio não é atingida.
O provimento, em momento algum, desloca atribuições próprias
do notário para o registrador civil das pessoas naturais. A Lei 8.935/94, ao
regulamentar o artigo 236 da Constituição Federal, é taxativa quando determina
caber ao notário (ou tabelião de notas) “intervir nos atos e negócios jurídicos
a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando
a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e
expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo”.
O registrador civil, por sua vez, averba e dá publicidade ao
ato. Ambos são entes estatais por delegação e sempre atuaram de forma harmônica
no procedimento para dissolução administrativa do casamento. O tabelião,
formalizando em escritura pública a vontade “comum” das partes, enquanto o
registrador, tornando pública essa manifestação, averbando-a no registro próprio.
A possibilidade de averbação direta, por requerimento unilateral e sem prévia
escritura pública, não compromete essa harmonia, eis que a escritura jamais
poderia ser lavrada nesses casos.
O provimento apenas assegura a desburocratização do
procedimento, afastando, nesses casos em que o tabelião não poderia lavrar a
escritura, a obrigatoriedade de intervenção do Poder Judiciário.
Em suma, qualquer restrição ao provimento denota falta de
percepção com novos tempos. Em momento em que o blockchain assume cada vez mais
protagonismo na vida do cidadão comum, impedir que haja declaração unilateral
de divórcio é negar a natureza das coisas. O sistema mudou porque os tempos são
outros. Cabe, agora, citando Harari, a decisão de insistirmos com carruagens ou
aceitarmos que já existe nas ruas um carro que não necessita de motorista, sob
pena de sobreviveremos à seleção natural. Alea jacta est.
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[1] Conforme explicamos a seguir, a razão de ser dessa nova
modalidade de divórcio é que após a Emenda 66-2010, o divórcio passou a ser um
direito potestativo de qualquer um dos cônjuges e ainda irresistível. Não há
defesa possível que impeça o divórcio de ocorrer. Eventual ação de invalidação
do casamento suspende o processo de divórcio. A hipótese é acadêmica e de
nenhuma utilidade prática.
[2] Provimento 6/2019: Art. 1º. Indicar que qualquer dos
cônjuges poderá requerer, perante o Registro Civil, em cartório onde lançado o
assento do seu casamento, a averbação do seu divórcio, à margem do respectivo
assento, tomando-se o pedido como simples exercício de um direito potestativo
do requerente.
Parágrafo 1º. Esse requerimento, adotando-se o formulário
anexo, é facultado somente àqueles que não tenham filhos de menor idade ou
incapazes, ou não havendo nascituro e, por ser unilateral, entende-se que o
requerente optou em partilhar os bens, se houver, a posteriori. Parágrafo 2º. O
interessado deverá ser assistido por advogado ou defensor público, cuja
qualificação e assinatura constarão do pedido e da averbação levada a efeito.
Art. 2º. O requerimento independe da presença ou da anuência do outro cônjuge,
cabendo-lhe unicamente ser notificado, para fins de prévio conhecimento da
averbação pretendida, vindo o Oficial do Registro, após efetivada a notificação
pessoal, proceder, em cinco dias, com a devida averbação do divórcio
impositivo. Parágrafo Único. Na hipótese de não encontrado o cônjuge
notificando, proceder-se-á com a sua notificação editalícia, após insuficientes
as buscas de endereço nas bases de dados disponibilizadas ao sistema
judiciário. Art. 3º. Em havendo no pedido de averbação do divórcio impositivo,
cláusula relativa à alteração do nome do cônjuge requerente, em retomada do uso
do seu nome de solteiro, o Oficial de Registro que averbar o ato no assento de
casamento, também anotará a alteração no respectivo assento de nascimento, se
de sua unidade, ou, se de outra, comunicará ao Oficial competente para a
necessária anotação; em consonância com art. 41 da Resolução nº 35 do Conselho
Nacional de Justiça. Art. 4º. Qualquer questão relevante de direito a se
decidir, no atinente a tutelas específicas, alimentos, arrolamento e partilha
de bens, medidas protetivas e de outros exercícios de direito, deverá ser
tratada em juízo competente, com a situação jurídica das partes já estabilizada
e reconhecida como pessoas divorciadas. Parágrafo único – As referidas questões
ulteriores, poderão ser objeto de escritura pública, nos termos da Lei nº
11.441, de 04.01.2007, em havendo consenso das partes divorciadas, evitando-se
a judicialização das eventuais questões pendentes.
Fonte: Conjur