Marcelo Lessa da Silva
Análise crítica da reforma administrativa
a partir da experiência notarial e registral, revelando um modelo de eficiência
e justiça fiscal para o Estado.
Introdução
A discussão em torno da reforma
administrativa reacendeu o debate sobre eficiência, racionalidade de gastos e
modernização do Estado brasileiro. Contudo, é preciso distinguir dois
contextos: a PEC 32/20, hoje arquivada, e a nova proposta em elaboração no
Congresso Nacional, sob relatoria do deputado Federal Pedro Paulo (PSD-RJ).
O relator tem reiterado que a proposta
atual não aproveita dispositivos da PEC 32 e vem sendo construída a partir de
diálogo amplo com categorias e instituições. Em suas declarações públicas,
defende um Estado mais eficiente, digital e moderno, baseado em meritocracia e
em modelos de gestão já bem-sucedidos. O grupo de trabalho promoveu dezenas de
audiências públicas e colheu mais de duzentas contribuições, colocando a
reforma entre as prioridades da Câmara dos Deputados.
Esse contexto é propício para refletir
sobre como os serviços notariais e registrais brasileiros, instituídos pela
CF/88, já se configuram como experiência bem-sucedida de governança pública,
que concilia Estado Social, inovação e racionalidade administrativa, devendo
ser estudada e considerada como referência para outros setores.
1. O arranjo constitucional de 1988:
Estado Social e Nova Gestão Pública
O art. 236 da CF/88 criou um modelo
híbrido que concilia o ideal do Estado de Bem-Estar Social com os princípios da
Nova Gestão Pública (NGP - New Public Management).
Esse arranjo rompeu com o antigo regime de
serventias vitalícias e hereditárias, custeadas pelo orçamento, e instituiu:
Titularidade pública, assegurando a fé
pública e a segurança jurídica;
Gestão privada por delegatário,
selecionado por concurso público;
Fiscalização permanente pelo Poder
Judiciário.
Assim, o constituinte originário conciliou
a função social dos serviços extrajudiciais com a busca de eficiência e
desoneração fiscal, em sintonia com a lógica da NGP.
2. Do custo estatal à desoneração plena
Antes de 1988, diversas serventias
oficializadas oneravam os cofres públicos. Após a reforma constitucional, todo
o custeio passou a ser responsabilidade dos delegatários: instalações, pessoal
(mais de 104 mil empregados celetistas), tecnologia e modernização.
Atualmente, as 12.512 serventias não
consomem recursos do orçamento. Ao contrário: repassam parte expressiva da
arrecadação bruta ao sistema de justiça, beneficiando o Judiciário, o
Ministério Público, as Defensorias e as Procuradorias estaduais. É um modelo
que gera duplo ganho: 1. desoneração completa do erário; 2. retorno financeiro
contínuo ao setor público. Além, do pagamento de tributos em geral, como o
ISSQN aos entes municipais; todos os tributos sobre a folha dos funcionários
com pessoa física, um exemplo são os 20% do patronal sobre a folha, bem como
toda responsabilidade trabalhista; 27,5% da remuneração líquida à Receita
Federal, ou seja, quase 1/3 de seu ganho é repassado aos cofres da União. Ou
seja, todo esse custo saiu dos cofres públicos e passou a ser de conta e risco
dos delegatários. Desoneração total do erário público.
3. Extrajudicialização: Economia
bilionária ao Estado, acompanhada de celeridade e eficiência na prestação dos
serviços públicos extrajudicializados
A extrajudicialização consolidou-se como
política pública de acesso à justiça multiportas. Apenas a lei 11.441/07, que
autorizou inventários e divórcios consensuais em cartório, representou economia
de R$ 8,3 bilhões ao Estado e reduziu prazos de anos para dias.
Outros exemplos:
Protesto de CDA: Recuperação de bilhões
gratuitamente para União e Estados.
Usucapião extrajudicial: Redução de mais
de dois anos para cerca de seis meses.
Reconhecimento de paternidade: Mais de 260
mil atos realizados, com impacto direto em políticas públicas.
Esses resultados demonstram que o sistema
notarial e registral apresentou-se como a solução para a sobrecarga judicial
garantindo acesso à justiça aos jurisdicionados no atual sistema brasileiro de
justiça multiportas para situações de menor complexidade enquanto o Poder
Judiciário se concentra em resoluções de demandas mais complexas.
4. Confiança social e legitimidade
democrática
Pesquisa Datafolha (2022) revelou que os
cartórios são a instituição mais confiável do Brasil, com 76% de aprovação.
Esse reconhecimento decorre da
neutralidade técnica e da relevância social das serventias, que também
funcionam como braço informacional do Estado:
Comunicação de óbitos ao INSS;
Dados vitais ao IBGE;
Emissão de CPF na certidão de nascimento;
Comunicações obrigatórias ao COAF e à
Receita (DOI).
Trata-se de uma rede capilarizada de
coleta e fornecimento de informações essenciais, gratuita para o Poder Público.
5. Inovação e digitalização: SERP e
e-Notariado
O setor extrajudicial lidera a
transformação digital no Brasil:
O SERP - Sistema Eletrônico dos
Registros Públicos, instituído pela lei 14.382/22, integra todas as serventias
do país em plataforma única.
O e-Notariado (provimento CNJ 100/20)
viabiliza escrituras e procurações digitais, com assinatura eletrônica e
videoconferência.
Essas iniciativas, financiadas
exclusivamente pelos delegatários, mostram como é possível modernizar serviços
públicos com segurança jurídica, eficiência e custo zero ao erário.
6. Remuneração, teto e as verdadeiras
distorções
Apesar dos avanços, algumas críticas
surgem no debate da reforma, em especial quanto à remuneração e aos valores
cobrados pelos serviços.
6.1 O equívoco do teto remuneratório
A proposta de impor um teto sobre a renda
líquida dos delegatários incorre em dois equívocos:
Conceitual: O delegatário não é servidor
público, mas gestor privado sob delegação estatal.
Econômico: Se houvesse equiparação, o
Estado teria que estender também as garantias estatutárias (licenças, férias,
previdência especial), criando ônus bilionário inexistente hoje.
6.2 O mito dos altos valores e a distorção
legislativa dos adicionais
A lei 10.169/00, art. 1º, parágrafo único,
determina que os emolumentos devem corresponder apenas ao custo e à adequada
remuneração do serviço.
Entretanto, em diversos Estados, leis
aprovaram percentuais adicionais sobre os emolumentos para fundos do sistema de
justiça - apelidados no debate público de "penduricalhos" -, alguns
superiores a 50% do valor do ato.
Exemplos:
São Paulo: Lei 11.331/02 (alterada pela
lei 15.855/15) - até 40% destinados a fundos do TJ, MP e Procuradoria.
Bahia: Lei 12.352/11 - percentuais que
superam 50% em determinados atos, destinados a fundos de reaparelhamento.
Rio Grande do Norte: LC 324/06 - repasses
ao Fundo de Desenvolvimento da Justiça.
O resultado é uma bitributação indireta
que onera injustamente o cidadão e compromete a isonomia entre estados.
6.3 O que a reforma deve enfrentar
Com o escopo de efetivar a justiça social
no país, a reforma administrativa deve enfrentar a distorção criada por essas
leis estaduais e restabelecer o espírito do art. 236 da CF/88 e da lei
10.169/00. É necessário retirar da legislação qualquer brecha que permitiu o
surgimento paulatino dessas cobranças extras, os chamados
"penduricalhos".
Portanto, o caminho seria:
Alterar a lei 10.169/00, vedando
expressamente tais adicionais;
Assegurar que os emolumentos reflitam
apenas o custo e a remuneração adequada e suficiente do serviço prestado;
Uniformizar nacionalmente os critérios de
cobrança, eliminando disparidades;
Restituir à lei orçamentária a função de
financiar órgãos públicos, preservando os emolumentos como taxa
contraprestacional, e não como instrumento de tributação indireta.
7. Governança pública colaborativa: Modelo
exportável
O sistema extrajudicial é exemplo de
governança pública colaborativa:
Particulares assumem risco e investimento;
O Judiciário regula e fiscaliza;
A sociedade recebe serviços céleres,
digitais e com gratuidades sociais.
Como demonstrei em Justiça Multiportas,
Serventias Extrajudiciais e a Integração de Foros: Nova Governança Pública no
Poder Judiciário brasileiro (Dialética, 2024), trata-se de experiência
acadêmica nacional que aplica a Nova Governança Pública (NGP - New Public
Management) ao Judiciário. O arranjo extrajudicial materializa eficiência,
meritocracia e inovação tecnológica, sendo modelo exportável para outras áreas
de prestação de serviços públicos.
8. Contextualização contemporânea da
reforma
As falas do deputado Pedro Paulo reforçam
a pertinência dessa análise. Ele tem resumido sua proposta em três eixos:
Diálogo amplo - dezenas de audiências
públicas e mais de 200 contribuições.
Combate a "penduricalhos" - foco
em racionalizar gastos e disciplinar distorções remuneratórias.
Estado moderno - mais eficiente, digital,
meritocrático e orientado a resultados.
Esses pontos convergem com a experiência
extrajudicial: digitalização avançada (SERP e e-Notariado), ingresso
meritocrático (concurso público), eficiência fiscal (custo zero ao erário) e
entrega de valor público (gratuidades e repasses).
Conclusão
A experiência notarial e registral no
Brasil deve ser vista como referência de governança pública eficiente:
desburocratizada, digital, meritocrática e sem custo ao erário - permitindo que
os recursos públicos sejam aplicados em áreas essenciais como saúde e educação.
Com o escopo de efetivar a justiça social,
a reforma administrativa deve enfrentar as distorções que oneram a população, e
não descaracterizar um modelo que há mais de três décadas concilia Estado
Social, NGP e inovação tecnológica.
Nesse contexto, cabe a indagação: queremos
voltar ao passado e reestatizar os cartórios extrajudiciais? Reassumir os
custos de mais de 12 mil serventias e mais de 100 mil funcionários que hoje não
custam um centavo ao Tesouro? Porque impor aos delegatários o teto
remuneratório do funcionalismo público é, em última análise, condicioná-los ao
regime jurídico dos servidores estatais, com todos os benefícios e encargos daí
decorrentes - algo que o constituinte originário de 1988 deliberadamente
afastou.
É isso que realmente deseja a sociedade
brasileira: reverter uma experiência consolidada que se mostra exemplo de
eficiência, modernização e justiça fiscal?
ARTIGOS E RELATÓRIOS
ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO
BRASIL (ANOREG/BR). Cartório em Números: Especial Desjudicialização. 6. ed.
Brasília: Anoreg/BR, 2024.
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LESSA DA SILVA, Marcelo. O direito humano
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LEGISLAÇÃO
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República, 2000.
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2007. Dispõe sobre inventário e divórcio consensual extrajudicial. Brasília,
DF: Presidência da República, 2007.
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DF: Presidência da República, 2022.
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Agência Câmara, 2025. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/noticias/1196083-especialistas-defendem-reforma-administrativa-com-foco-em-melhores-servicos-e-fim-de-privilegios/.
Acesso em: 4 set. 2025.
[PEDRO PAULO - INSTAGRAM]. Postagens sobre
a Reforma Administrativa. Instagram, 2025. Disponível em:
https://www.instagram.com/pedropaulocarioca/. Acesso em: 4 set. 2025.
Fonte: Migalhas