Conforme já propunha a
doutrina1, o provimento 172 do CNJ, publicado em 5/6/24, resolveu que
"a permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por
instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária
em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas
a operar no âmbito do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário
(art. 2º da lei 9.514/97), incluindo as cooperativas de crédito." 2
Em recente artigo
publicado neste portal, defendeu-se que um dos consideranda do provimento 172
teria reproduzido leitura equivocada da decisão do CNJ no PCA
0000145-56.2018.2.00.0000. Alegou-se, quanto a isso, que seria "equívoca a
interpretação do corregedor de que o acórdão do CNJ teria ratificado provimento
que limita o uso de instrumento particular para alienação fiduciária somente
para entidades que operam no SFI, conforme definição do art. 2º da lei
9.514/97."
Não houve, no entanto,
nenhum equívoco: De acordo com a ementa da decisão, em trecho imediatamente
anterior a afirmações sobre a competência normativa do órgão, "[o]
entendimento sufragado pelo Tribunal mineiro é razoável e encontra ressonância
na legislação de regência". É o que se pode ler também do acórdão: "A
hermenêutica jurídica e legislativa levada a efeito pelo TJ/MG é razoável e
guarda sintonia com os entendimentos de outros tribunais, a exemplo do TJ/PA,
TJ/MA, TJ/PB e TJ/BA, que também inadmitem o uso de instrumento particular para
entidades não integrantes do SFI." Noutros termos, a decisão do CNJ
ratificou a interpretação que limita o uso de instrumento para alienação
fiduciária somente para entidades que operam no SFI.
Argumenta-se, além
disso, que a decisão do CNJ não teria respeitado a sistemática da lei 9.514/97.
O argumento revolve o entendimento de que o art. 22, § 1º (que esclarece que a
alienação fiduciária de coisa imóvel pode ser contratada por entidade que não
participa do SFI) deve ser empregado na interpretação do art. 38 (que autoriza
o emprego de "instrumento particular com efeitos de escritura
pública").
Uma vez mais3, o
argumento é inapropriado. O art. 22, § 1º, trata tão somente do âmbito
subjetivo do contrato de alienação fiduciária em garantia. Essa regra nada diz
sobre o efetivo objeto do art. 38. Não é possível, do ponto de vista
sistemático, extrair do art. 22, § 1º, que autoriza a contratação da alienação
fiduciária, qualquer prescrição de forma. Noutros termos: Se um texto normativo
permite que as entidades A e B celebrem o contrato de alienação fiduciária,
dessa permissão, por si só, do ponto de vista jurídico, não decorre nenhuma
consequência para a interpretação de normas, na mesma lei, quanto à forma
prescrita para tal contrato. São regras distintas.
Nada disso é novo.
Restringir o uso do "instrumento particular com efeitos de escritura
pública" a entidades integrantes do SFI é reconhecer e reafirmar o sentido
histórico da figura.4 A atribuição dos "efeitos de escritura
pública", afinal, serve - insista-se - para justificar "tratamento
registral diferenciado" dos contratos celebrados pelas entidades
participantes do SFI.5 Não há sentido algum em estendê-la a entidades que
não participem do SFI.
Também se levantam,
contra o provimento 172 do CNJ, argumentos teleológico-consequencialistas.
Fala-se, nesse caso, de "uma clara afronta ao objetivo proposto pelo
legislador" nos Marcos Legais da Securitização e das Garantias na medida
em que ele aumentaria "sensivelmente os custos de transação
das operações de crédito nos mercados de capitais, financeiro e de
securitização."
Além de ser meramente
retórica, não se baseando em nenhum estudo, a afirmação não parece levar em
conta, para cálculos de eficiência, variáveis como a qualidade e a
confiabilidade dos serviços notariais, que, por meio do controle feito sobre
contratos, evitam diferentes tipos de vícios e os custos a eles
atrelados.6 É por meio da colaboração notarial que se assegura a formação
de consenso juridicamente relevante.7 Nos termos do o art. 1º da lei
8.935/94, a lei dos serviços notariais e de registros, a notarização serve a
"garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos
jurídicos." Muito longe de gerar "insegurança jurídica", como a
retórica vazia tenta fazer crer, a notarização contribui, ao invés, para a
elevação de segurança jurídica.
Além disso, abrir mão
de atributos típicos e historicamente consolidados do notariado latino - como a
autenticidade, a segurança e a fé pública - simplesmente em benefício de uma
suposta redução de custos de transação pode trazer sérias consequências
indesejadas8: A experiência comparada mostra que "exigências de forma
aplicáveis a equivalentes funcionais" dos "refinanciamentos
hipotecários ofertados a devedores pré-insolventes" nos Estados Unidos
"teriam obstado sua disseminação - e, com ela, a eclosão de bolhas
imobiliárias - na Europa e na América Latina."9 A atuação de notários
enquanto terceiros imparciais altamente qualificados, capazes de promover, na
redação da escritura, o interesse de ambas as partes, não pode ser negligenciada.
Fonte: Migalhas