Instauração de concurso singular de credores em
processos de execução pode gerar distorções conceituais e processuais,
requerendo distinção clara dos concursos universais de credores.
Não é incomum a instauração de um concurso singular de
credores em processos de execução decorrente de penhora de determinado bem.
Atualmente, o CPC prevê a instauração deste concurso singular em seu art. 908,
na seção V, da "Satisfação do crédito". Porém, na prática, também não
é incomum uma verdadeira criação de procedimentos pelo juízo instaurador desse
concurso de credores com interpretações extensivas na lei de falências, o que
acarreta uma distorção conceitual, de finalidade e do próprio sistema regulamentado
pelo atual CPC.
Assim, algumas considerações são necessárias sobre esse
concurso singular de credores previsto no texto processual e a necessária
distinção com os denominados concursos universais de credores, decorrentes da
falência (para o empresário e sociedade empresária) e da insolvência civil
(para sociedades simples e pessoas físicas não empresárias). Existe uma
distinção tanto na razão de ser desses institutos como nos objetivos, que
acabam por impedir qualquer tipo de aplicação subsidiária ou supletiva das normas
de um para o outro.
O denominado concurso universal de credores se instaura
em decorrência de um estado juridico do devedor. Está-se diante de uma tutela
declaratória de um novo estado juridico do devedor que repercute em todo o seu
patrimônio. Assim, constatada uma insolvência (na acepção jurídica do
termo) de uma sociedade empresária, tem-se, como consequência, a instauração de
um concurso universal de credores. Universal, pois, submete todos os credores
daquele devedor que teve o seu estado juridico definido como falido (ou
insolvente). Essa é a razão de ser do concurso universal de credores: a
submissão de todos os credores ao mesmo gerenciamento patrimonial ordenado pelo
juízo falimentar. A regulamentação legal baseia-se numa paridade de condições
para os credores concorrerem com o patrimônio do devedor, que será
integralmente vertido para saldar as dívidas. Para regular essa paridade se
observa uma ordem de pagamentos pré-definida em lei. A finalidade, portanto, é
a gestão do patrimônio do devedor que fica, por inteiro, sob a intervenção do
poder judiciário (que, inclusive, para tal mister, conta com a figura de um
auxiliar do juízo, denominado administrador judicial).
Quando se fala, porém, em concurso singular de credores,
tem-se total diferença, na razão de ser do instituto e na sua finalidade.
Primeiro, porque o concurso se estabelece pelo fato de uma constrição judicial
recair sobre determinado bem do devedor. Não se discute, neste âmbito, a
solvência jurídica ou não daquele que sofreu a constrição. Apenas se
estabelece, entre credores existentes do devedor, quem deve, prioritariamente,
se satisfazer com o produto da alienação ou adjudicação. Por isso se utiliza o
termo "singular". Não se tem modificação do estado juridico do
devedor, muito menos intervenção judicial em todo o seu patrimônio. O que será
definido é tão somente a destinação do produto daquela alienação decorrente de
um ato de constrição judicial em um processo de execução individual.
Provavelmente aqui é que se rendem as maiores confusões processuais na
tentativa de aproximar esse concurso singular com o concurso universal. Mas
vejamos que a razão de ser dos próprios institutos já bastaria para impedir essa
aproximação, já que o concurso universal, como visto, advém de uma modificação
(drástica) no estado juridico do devedor que o afasta por completo do
gerenciamento sobre a totalidade do seu patrimônio. Já sob o aspecto da
finalidade, o concurso singular não objetiva conferir tratamento paritário
entre os credores, pois a sua finalidade é a satisfação daqueles credores que,
voluntariamente, procederam a penhora sobre o mesmo bem, e, apenas por isso,
concorrem com o produto da alienação daquele bem. Nada mais. O que se busca é
apenas resolver aquela determinada constrição judicial para os credores que ali
encontraram, naquele bem penhorado, a possibilidade da satisfação dos seus
créditos.
Além de tais distinções é importante ressaltar um
contexto lógico. Somente existe o concurso singular de credores porque se
pressupõe que o devedor seja solvente. Pois, uma vez insolvente, não haverá
concurso singular, mas sim concurso universal.
Para o concurso singular, o código estipulou duas medidas
de resolução: atenção à preferência legal (de direito material) e à preferência
processual (de anterioridade da efetivação da penhora). São essas duas métricas
que trarão ordem na satisfação desses credores pelo produto da alienação. Além
dessas métricas, o código ressalvou os créditos que recaem sobre o próprio bem
(inclusive, os de natureza propter rem), que se sub-rogarão diretamente sobre o
respectivo preço, e se, dentre eles, houver um concurso, será obedecida a
preferência legal (de direito material).
Se estabelecendo, portanto, o concurso singular
decorrente da penhora de um bem, instaura-se naqueles autos em que o bem foi
objeto de penhora, uma ordem que deverá levar em consideração as preferências
de direito material (créditos privilegiados, de natureza alimentar, natureza
tributária etc.) para que, somente quando se estiver diante de crédito de mesma
natureza material, se proceder a distinção pela anterioridade da penhora (art.
908 § 2º do CPC). Assim, sob a métrica processual, terá preferência quem primeiro
tiver efetivado a penhora do bem.
Sob a ótica de preferência em direito material,
controvérsia existe sobre a necessidade de, para se observar tal preferência,
se circunscrever apenas aos credores preferenciais (de direito material) que
tenham assim procedido a penhora daquele bem. No âmbito do STJ é possível
verificar posições diversas, principalmente no âmbito do crédito tributário.
Numa das mais recentes, em 21.9.22, a Corte Especial, no julgamento de Embargos
de Divergência 1.603.324/SC, concluiu, à unanimidade, que "independentemente
da existência de ordem de penhora na execução fiscal, a Fazenda Pública poderá
habilitar seu crédito privilegiado em autos de execução por título
extrajudicial. Caso ainda não tenha sido ajuizado o executivo fiscal,
garantir-se-á o exercício do direito da credora privilegiada mediante a reserva
da totalidade (ou de parte) do produto da penhora levada a efeito em execução
de terceiros."
Dentre as tentativas - que não encontram respaldo
conceitual e de finalidade, como abordado acima - de se criarem limitações no
concurso singular de credores, destaca-se, caso recentemente julgado no STJ,
que pretendeu aplicar, supletivamente, norma constante na lei de falências,
limitadora do recebimento de crédito de preferência trabalhista, de 150
salários-mínimos (art. 83, I da lei 11.101/05). De fato, no concurso universal
de credores, a legislação falimentar impõe um limite para recebimento do crédito
trabalhista prioritário, neste teto, sendo que o excedente é alocado para
recebimento juntamente com os credores quirografários (ainda que prioritário em
relação a estes).
No caso concreto, o juízo de um concurso singular, ao
aplicar as preferencias legais (de direito material), estabeleceu um teto para
tais credores, importando a norma da legislação falimentar. No julgamento do
Recurso Especial pelo credor trabalhista (decorrente de honorários
advocatícios), a 4ª turma de Direito Privado, reafirmando a autonomia entre as
duas espécies de concursos, desfez a confusão, justamente ressaltando a
impossibilidade de aplicabilidade subsidiária ou supletiva entre tais
institutos, seja em razão da finalidade distinta, seja em razão da
regulamentação do CPC que já exaure o procedimento a ser adotado. Assim,
"o limite de 150 salários-mínimos, previsto no art. 83, I, da lei
11.101/05 para pagamento preferencial de crédito trabalhista em concurso
universal de credores, não se aplica por analogia ao concurso singular, em
razão da diversidade dos propósitos de cada um dos procedimentos e de suas
particularidades. Recurso provido para afastar a restrição do pagamento do
crédito de honorários advocatícios ao limite previsto no art. 83, I, da lei
11.101/05." (REsp 1.839.608/SP, relator ministro Antonio Carlos Ferreira,
4ª turma, julgado em 20/2/24, DJe de 27/2/24.)
Como se procurou demonstrar, as duas espécies de
concursos de credores não podem ser confundidas e muito menos podem se submeter
a uma espécie de mútua aplicação dos seus regimes legais, de modo a influenciar
no tratamento a ser conferido no caso concreto. O Código de Processo vigente é
aplicável, diretamente e exaustivamente para solução de concurso singular de
credores, não se admitindo qualquer extensão de aplicação das legislações
especificas de insolvência.
Fonte: Migalhas