Está em pauta no Supremo Tribunal Federal
o reconhecimento da repercussão geral do tema 1236, no leading case ARE
1309642, que trata do regime da separação obrigatória de bens no casamento e na
união estável de pessoas maiores de setenta anos.
Segundo a justificativa apresentada pelo
ministro Roberto Barroso[1], no Recurso Extraordinário discute-se, à luz dos
artigos 1º, III, 30, IV, 50, I, X, LIV, 226, § 3º e 230 da Constituição
Federal, a constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, que
estabelece ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa
maior de setenta anos, e a aplicação dessa regra às uniões estáveis,
considerando o respeito à autonomia e à dignidade humana, a vedação à
discriminação contra idosos e a proteção às uniões estáveis.
Inicialmente, pontua-se que o artigo 1.641
do Código Civil cuida das hipóteses legais em que os nubentes não têm liberdade
de escolher o estatuto patrimonial que melhor lhe aprouver, como previsto no
art. 1.639, caput, da lei civil, sendo obrigados a se casar pelo regime de bens
da separação obrigatória ou legal. O objetivo do legislador foi o de proteger
essas pessoas de eventuais "golpes do baú". Desse modo, aquelas que
estiverem sujeitas às causas suspensivas (CC, art. 1.523), bem como as que
tiverem tido de obter autorização judicial para o casamento (CC, art. 1.519)
deverão se submeter a este regime de bens. Além delas, o Código prevê que
pessoas maiores de 70 anos, a partir da redação dada pela Lei n. 12.344/2010,
não poderão escolher o regime de bens que quiserem. Elas estão, igualmente,
obrigadas ao matrimônio sob o regime da separação obrigatória, sem chance de
alteração. Interessante notar que essa mesma determinação legal inexiste para
os maiores de 16 e menores de 18 anos, que obtiverem de seu assistente legal -
pais ou tutor - a autorização para se casar e para a escolha do regime de bens
(CC, art. 1.654). Isto porque, ao que parece, como eles deverão ter a concordância
destes para contrair as núpcias, supõe-se que eles impedirão a escolha de
regime de bens pelo menor relativamente incapaz, se entenderem que o regime não
atende aos interesses deste. No entanto, uma vez estando casado, nada impede ao
cônjuge, que foi emancipado pelo casamento, juntamente com seu marido ou
mulher, de ingressar em juízo, pretendendo a modificação do regime de bens, nos
moldes do § 2º. do art. 1.639 do Código Civil. A imposição do regime de bens da
separação obrigatória, no caso desses menores, só ocorrerá, se ele necessitar
de autorização judicial para o casamento, conforme inciso III do art. 1.641 da
lei civil.
Destaca-se que antes da lei de 2010, o
Código Civil de 1916 previa que a idade da mulher para a imposição do regime da
separação legal era de 50 anos; e, para o homem, 60. Esta diferença era
compreensível para o começo do século XX, uma vez que a mulher ainda tinha
diversas limitações civis, sendo, inclusive, considerada relativamente incapaz,
e, portanto, supunha-se que não tinha experiência de lidar com situações que
não as do lar. Ademais, naquele tempo, as pessoas com aquelas idades já eram
consideradas muito idosas. Quis assim o legislador protegê-los ao restringir
seu direito de escolha pelo estatuto patrimonial que bem entendessem.
Após um salto no tempo, o cenário mudou
com a proclamação da Constituição de 1988, e o estabelecimento da igualdade
entre o homem e a mulher, como direito fundamental (Const., art. 5º., I). Não
só. O direito fundamental prega pela igualdade em direitos e obrigações de toda
e qualquer pessoa, nacional ou estrangeira. Nesse sentido, incabível a
imposição de um regime de bens a uma pessoa única e simplesmente pelo fato de
ela ter atingido determinada idade.
Destaca-se ainda o inciso IV do art. 3º. da Lei Maior. Disciplina este artigo do texto constitucional, que um dos objetivos da República do Brasil é a de "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outras formas de discriminação".
Importa mencionar ainda o art. 1.513 da
lei civil, que dispõe ser "defeso a qualquer pessoa, de direito público ou
privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.". Não
estaria o próprio legislador, ao determinar que o idoso é obrigado a casar pelo
regime da separação obrigatória, interferindo na comunhão de vida dos cônjuges?
Tudo leva a crer que sim, uma vez que o idoso do inciso II do art. 1.641 do CC,
não é incapaz nos moldes do art. 4º. do mesmo diploma legal. Para que isto
ocorra, o idoso terá de passar por um procedimento de interdição (CPC, arts.
747 e s.). Ainda que ele seja colocado sob curatela, de acordo com o Estatuto
da Pessoa com Deficiência - EPD - (Lei n. 13.146/2015), sua incapacidade não
será absoluta, mas tão somente relativa (EPD, arts. 84 e 85, especialmente).
Neste caso, a incapacidade só dirá respeito ao patrimônio. Portanto, neste caso
específico, ele poderá se casar (EPD, art. 6º., I), mas será seu curador quem
determinará o regime de bens do casamento, juntamente com o futuro cônjuge.
Estando o idoso acima dos 70 anos, contudo, o regime de bens será o determinado
no art. 1.641, II do CC.
Conclui-se que se está diante da infração ao art. 10, caput, do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) que prevê ser "obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis." Note-se que, o Estatuto do Idoso buscou garantir aos maiores de 60 anos a plenitude de seus direitos fundamentais e sua proteção integral preservando os princípios de liberdade e dignidade (art. 2º), sendo expresso em seu artigo 4º que nenhum idoso será objeto, entre outros, de qualquer tipo de discriminação. Portanto, sob o ponto de vista da limitação etária, o inciso II do artigo 1.641 é absolutamente inconstitucional.
Analisando o diploma sob o prisma dos institutos do casamento e união estável, tem-se que, apesar de ambos serem considerados entidades familiares e receberem ampla proteção do Estado por meio do artigo § 3º., art. 226 do texto constitucional, eles não se confundem.
O casamento é um ato jurídico formal,
solene, que tem termo de início e fim (divórcio ou morte do cônjuge, CC, art.
1.571, § 1º.). Trata-se de instituição de ordem pública que estabelece a
comunhão de vida entre duas pessoas.
A união estável, por sua vez, é um ato-fato, que não tem data exata de início, não tem tempo mínimo de existência para que assim seja considerada, e não tem o condão de alterar o estado civil. Trata-se de uma relação lícita, na qual os partícipes são desimpedidos (solteiros, divorciados ou separados de fato) e mantêm uma convivência pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituir família (CC, art. 1.723, caput). Isso descarta as relações eventuais e aquelas nas quais um dos envolvidos na relação já esteja comprometido com outro relacionamento - casamento ou união estável -, o que constitui concubinato (art. 1.727, CC).
Como já tivemos oportunidade de nos
manifestar anteriormente, a conversão em casamento não é um imperativo legal.
"Ora, se uma pessoa desimpedida para casar faz a opção por viver com uma
outra, sem a celebração do casamento civil ou religioso com efeitos civis,
assim o faz com o mero objetivo de não estar sujeita às leis que regulam o
casamento. Trata-se de mais uma opção de vida do que uma afronta aos valores
morais que regulamentam a sociedade. Mesmo porque, com o instituto do divórcio,
os divorciandos encontram-se livres para contrair novo casamento"[2].
Outro ponto de destaque é o fato de que o
Código Civil de 2002 abraçou a liberdade de pactuação de regras patrimoniais
entre os companheiros, considerando-se que, na falta de acordo escrito, vigeria
o regime da comunhão parcial de bens, disposto nos arts. 1.658 a 1.666 do
Diploma Civil. Ressalta-se, aqui, que aos companheiros não foi imposta qualquer
restrição no tocante ao regime de bens, ao contrário do ocorrido em relação ao
casamento, que prevê, expressamente, estarem os maiores de 70 anos obrigados a
se casarem sob o regime da separação legal de bens.
Ao analisar a lei 9.278/96, que foi abarcada pelo Código Civil de 2002, não há como impor aos conviventes, que iniciam sua vida comum após os setenta (70) anos de idade, o regime de separação obrigatória de bens. Isso porque a Lei dispunha que os bens adquiridos de forma onerosa seriam de ambos os companheiros, independentemente da comprovação do esforço comum, se não houvesse disposição em contrário. Neste mesmo sentido, aliás, a Súmula 377 do STF, pela qual os bens adquiridos durante a constância da vida conjugal, durante a vigência do Código Civil de 1916, pertenceriam a ambos os cônjuges, na hipótese de eles serem casados pelo regime da separação legal de bens.
Chama-se a atenção para este aspecto, pois esta seria a solução para aqueles que constituíssem uma união estável. "A norma de condomínio para os bens adquiridos após o começo da união estável terá o mesmo efeito que o regime da separação obrigatória entre os cônjuges que estiverem acima da faixa etária determinada em lei."[3]
Notória é, portanto, a intenção do
legislador em não limitar a administração e livre disposição do patrimônio para
os maiores de setenta (70) anos que optem pela união estável.
Por fim, deve-se lembrar que o art. 1.641
da lei civil é norma de ordem pública, à qual não se pode interpretar de modo
extensivo. Desse modo, por ela foi imposto, excepcionalmente, o regime da
separação legal ou obrigatória de bens, a todos aqueles que se encontram nas
hipóteses legais previstas em seus incisos. Assim, não há como se aplicar o
art. 1.641, II, do CC, às uniões estáveis, restringindo o direito dos
companheiros de se beneficiarem das normas que disciplinam o regime da comunhão
dos aquestos, porquanto isso seria aplicar por analogia, norma restritiva de
direito.
Acompanharemos o desfecho da tese de
Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal para garantir a defesa da
dignidade da pessoa humana e a segurança jurídica necessária para aqueles que,
acima de 70 anos, busquem constituir família.
Débora Gozzo é pós-doutora pelo Max-Planck-Institut,
Hamburgo/Alemanha. Doutora em Direito pela Universidade de Bremen. Mestre em
Direito pela Alemanha e pela USP. Professora Titular de Direito Civil e
Colaboradora do Mestrado da USJT.
Maria Carolina Nomura-Santiago é mestre em Direito Civil Comparado pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP (2020) e em Direito
Internacional pela Fundación José Ortega y Gasset - Gregorio Marañon, então
adscrito à Universidad Complutense de Madrid (2006). Membro da Academia
Iberoamericana de Derecho de Familia y de las Personas, da Associação de
Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) e do Instituto Brasileiro de
Responsabilidade Civil (IBERC). Advogada e jornalista.
Fonte: Migalhas