O ano de 2022 foi o
primeiro do pós-pandemia da Covid-19. Em contraste com os dois anos anteriores,
repletos de alterações legislativas, a exemplo da Lei nº 14.010/2020, que
criou um regime transitório de Direito Privado para tempos de pandemia (RJET);
da Lei nº 14.192/2021, que criminalizou a violência política contra a
mulher; da Lei nº 14.154/2021, que alterou a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da
Criança e do Adolescente); o ano que se finda, pelo menos do ponto de vista
legislativo, trouxe poucas regras novas com impacto no Direito de Família.
Talvez, a mais
relevante, como bem destacou Flávio Tartuce em sua retrospectiva [1], seja a Lei nº 14.382 de 27 de
junho de 2022, que alterou o Código Civil e a Lei dos Registros Públicos,
permitindo a modificação extrajudicial e imotivada do prenome da pessoa,
afastando o prazo decadencial de um ano, após atingida a maioridade. A
imutabilidade do prenome já havia sido mitigada pela jurisprudência, podendo-se
concluir, agora, que a regra passou a ser a da mutabilidade do nome, tanto
prenome como sobrenome. Nessa senda, a nova Lei dispôs, também, sobre a alteração
extrajudicial do sobrenome do cônjuge, na constância do casamento, bem como
sobre o acréscimo do sobrenome pelos companheiros. Simplificou procedimentos de
habilitação para o matrimônio, disciplinou a conversão extrajudicial da união
estável em casamento e tratou do registro das escrituras públicas
declaratórias, e dos distratos de união estável, no Livro "E" do
registro civil de pessoas naturais.
No que toca à
jurisprudência, merece destaque a mudança de orientação a respeito do início do
prazo de prescrição da ação de petição de herança, quando cumulada com a ação
de investigação de paternidade. A posição consolidada à luz do CC/1916 era a de
que o prazo prescricional tinha início na data da abertura da sucessão.
Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça passou a decidir que o prazo só
começaria após o trânsito em julgado da sentença que julgasse procedente a
investigatória. E agora, no julgamento do EAREsp 1.260.418/MG, o Tribunal da
Cidadania voltou a aplicar a teoria clássica, no sentido de que o termo inicial
do prazo é contado a partir da abertura da sucessão, que se dá com o evento
morte, independentemente do reconhecimento judicial da relação de filiação.
No âmbito do
Supremo Tribunal Federal, foi reconhecida repercussão geral ao Recurso
Extraordinário com Agravo (ARE) 1.309.642 (Tema 1.236), que vai decidir sobre a
constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, considerando o
respeito à autonomia e à dignidade humana e a vedação à discriminação contra
idosos. O dispositivo, como se sabe, impõe o regime da separação legal ou
obrigatória de bens aos que contraírem o casamento com mais de 70 anos, com o
presumido intuito de tutelar o idoso contra o chamado "golpe do baú",
expressão que frequenta o imaginário popular diante de relacionamentos
conjugais entre pessoas com grande disparidade de idade. Nesses casos, não pode
o casal eleger, por pacto antenupcial, qualquer outro regime de bens e, casados
sob tal regime (o da separação obrigatória) e em caso de morte de qualquer um deles,
o sobrevivente não dividirá a herança com os filhos do falecido. Há quem
enxergue nessa regra um caráter discriminatório e atentatório à dignidade dos
cônjuges septuagenários, sendo, por isso, inconstitucional. Afirma-se que a
separação de bens etária é preconceituosa quanto às pessoas idosas, que passam
a ser tratadas como se fossem incapazes no que tange à gestão do seu próprio
patrimônio. Antecipo que o não vejo, no comando legal, tratamento
discriminatório, muito menos atentado à dignidade da pessoa humana.
O regime da
separação obrigatória é exceção, prevista em lei, ao princípio da liberdade dos
pactos antenupciais, perdendo os noivos a liberdade de escolha do regime de
bens que comandará as suas relações patrimoniais na vigência do matrimônio. Trata-se
de uma limitação parcial da autonomia privada, que precisa ser compreendida
dentro de um contexto mais amplo de proteção patrimonial a determinadas pessoas
especialmente eleitas pelo legislador. Essas pessoas, a quem a lei quis
proteger, mantêm o pleno poder de disposição em relação a todo o seu acervo
patrimonial, apesar de proibidas de contratar um regime de bens diverso da
separação. Mas não estão impedidas de gerir os seus bens, nem de deles dispor,
a título gratuito ou oneroso, inclusive a favor do cônjuge ou companheiro.
Logo, a imposição do regime não priva o cônjuge septuagenário de contemplar o
outro mais jovem com parcelas do seu patrimônio, por doação ou testamento, se
assim o desejar -o que significa dizer que a obrigatoriedade do regime representa,
na prática, mínima intervenção na autonomia privada, inapta a justificar uma
pretensa inconstitucionalidade por infração à cláusula da dignidade.
No que se refere à
doutrina, ocorreram duas profícuas reuniões de especialistas, em 2022. A primeira
foi a 9ªJornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da
Justiça Federal no mês de maio, em homenagem aos 20 anos do Código Civil. Na
ocasião foram aprovados diversos enunciados doutrinários relacionados à guarda
compartilhada, direito de convivência familiar com os avós, ressarcimento à
vítima de violência doméstica a ser pago exclusivamente à conta da meação
agressor, inclusão das despesas com doula e consultora de amamentação nos
alimentos gravídicos. Também se pacificou o entendimento de que a expressão
"diversidade em linha", constante do §2º do artigo 1.836 do CCB,
que trata da sucessão dos ascendentes, não se restringe à linha paterna e à
linha materna, devendo ser compreendida como linhas ascendentes [2]. A segunda reunião foi a 1ª
Jornada de Direito Notarial e Registral, que igualmente teve palco no
Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação científica dos ministros Sérgio
Kukina e Ribeiro Dantas, em agosto último, com a discussão e aprovação de
enunciados doutrinários com grandes repercussões práticas para o direito de
família e sucessões, entre os quais posso citar, à guisa de exemplos e sem
pretensão de exauri-los [3]:
"Enunciado 2 –
Não obstante a ausência de previsão legal, é facultado aos pais a atribuição de
nome ao natimorto, a ser incluído em registro que deverá ser realizado no Livro
C-Auxiliar.
Enunciado 6 – O procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva não
deve ser encaminhado para a análise do Judiciário, quando a ausência de
consentimento do genitor ocorrer em razão de seu falecimento prévio.
Enunciado 7 – A presunção de paternidade, prevista no artigo 1.597 do
Código Civil, aplica-se aos conviventes em união estável, desde que esta esteja
previamente registrada no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais da
Sede, ou, onde houver, no 1º Subdistrito da Comarca, nos termos do Provimento
CNJ nº 37/2014.
Enunciado 21 – Para fins de ingresso no Registro de Imóveis, a carta de
sentença ou formal de partilha pode ser aditada ou rerratificada por meio de
escritura pública, com a participação de advogado e dos interessados.
Enunciado 22– Para o ingresso da união estável no Registro de Imóveis não é
necessário o seu prévio registro no Livro E do Registro Civil das Pessoas
Naturais.
Enunciado 27 – A cláusula de impenhorabilidade, imposta em doação ou
testamento, não obsta a alienação do bem imóvel, nem a outorga de garantia real
convencional ou o oferecimento voluntário à penhora, pelo beneficiário.
Enunciado 47 – Nas escrituras relativas a fatos, atos ou negócios relativos
a imóveis, inclusive o inventário, separação, divórcio e dissolução de união
estável, é cabível a menção à consulta feita ao sítio eletrônico da Receita
Federal. A existência de débitos tributários será consignada na escritura, com
a advertência das partes sobre os riscos relativos à realização do ato
notarial.
Enunciado 48 – O inventariante nomeado pelos interessados poderá, desde que
autorizado expressamente na escritura de nomeação, formalizar obrigações
pendentes do falecido, a exemplo das escrituras de rerratificação, estremação
e, especialmente, transmissão e aquisição de bens móveis e imóveis contratados
e quitados em vida, mediante prova ao tabelião.
Enunciado 52 – O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção
consensual de união estável, mesmo havendo filhos incapazes, poderão ser
realizados por escritura pública, nas hipóteses em que as questões relativas à
guarda, ao regime de convivência e aos alimentos dos filhos incapazes já
estiverem previamente resolvidas na esfera judicial.
Enunciado 53 – É admissível a escritura de restabelecimento da sociedade
conjugal, ainda que haja filhos incapazes ou nascituros.
Enunciado 74 – O divórcio extrajudicial, por escritura pública, é cabível
mesmo quando houver filhos menores, vedadas previsões relativas a guarda e a
alimentos aos filhos.
Enunciado 80 – Podem os cônjuges ou companheiros escolher outro regime de
bens além do rol previsto no Código Civil, combinando regras dos regimes existentes
(regime misto).
Enunciado 81 – Podem os cônjuges, por meio de pacto antenupcial, optar pela
não incidência da Súmula 377 do STF.
Enunciado 82 – Em regra, é válida a doação entre cônjuges que vivem sob o
regime de separação obrigatória de bens".
Finalmente, entre
os eventos jurídicos realizados em 2022, no Brasil e no exterior, não posso
deixar de salientar, nessa retrospectiva, os seguintes:
— Em final de
março, a OAB-SC, sob a condução pujante de Cláudia Prudêncio, realizou o
primeiro grande evento presencial do ano O Direito de Família e
Sucessões e a Advocacia, em que tive a oportunidade de defender, mais uma
vez, a posição de que o companheiro sobrevivente não é herdeiro necessário;
— No início de
maio, ocorreu em Portugal o 8º Colóquio Luso Brasileiro, fruto da
profícua parceria entre o Instituto dos Advogados de São Paulo e as
Universidades de Lisboa e Évora, ocasião em que discuti as relações entre afeto
e patrimônio, à luz do ordenamento jurídico brasileiro;
— Em
junho tivemos o 12º Congresso de Direito de Família do Mercosul,
na cidade de Gramado (RS), quando discorri sobre a possibilidade e conveniência
do uso da arbitragem para a solução de litígios patrimoniais disponíveis em
família e sucessões;
— Em julho,
novamente em Gramado, o 1º Congresso da ESA-RS, em homenagem aos 90
anos da OAB-RS, sob a batuta do presidente Leonardo Lamachia e do Diretor Rolf
Madaleno. Meu tema foi o Direito das Sucessões nos 20 anos do Código Civil;
— Agosto, o
centro dos debates foi a cidade de São Paulo, com diversos eventos promovidos
pela OABSP, Iasp e Aasp;
— Em início de
setembro estive em Campo Grande, no 3º Congresso do IBDFam (MS), a
convite da presidente Libera Copetti, falando sobre as distinções entre enteado
e filho socioafetivo. O evento ocorreu nas belas dependências da OAB-MS, sob a
liderança dos presidentes Bitto Pereira e Mansour Karmouche. No final do mês,
o 10º Congresso do IBDFam-SP, em homenagem ao advogado familiarista
Sérgio Marques da Cruz. E, ainda em setembro, um dos maiores eventos do ano,
organizado pela OAB-SC, com mais de seiscentos advogados reunidos em Blumenau
para debater vulnerabilidades e inclusão. A minha palestra foi sobre violência
patrimonial sob a perspectiva do protocolo de gênero. Nesse encontro, houve o
lançamento de uma obra coletiva, em minha homenagem, reunindo juristas
catarinenses e abordando os principais aspectos da violência nas famílias [4].
Outubro foi marcado
pelo grandioso 7º Congresso Internacional do IBDFam, na cidade
litorânea de Búzios (RJ), com o lançamento do meu novo livro Direito
Fundamental de Herança [5]. Houve, ainda, o 12º
Congresso Estadual da OAB-SP e um interessante debate sobre o futuro
do Direito das Sucessões, promovido pela ESA-MT, na cidade de Cuiabá;
— Em novembro
o meu destaque vai para o 10º Congresso Intercontinental de Direito
Civil, na tradicional e secular Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra em Portugal;
Todavia, os dois eventos que mais me marcaram ao longo do ano se passaram na capital das mangueiras, a cidade de Belém-PA, ambos em homenagem ao grande mestre Zeno Veloso, precocemente falecido. O primeiro organizado pelo Colégio Notarial Brasileiro e o segundo pelo IBDFam (PA), com apoio da OAB-PA, tão bem conduzida pelo advogado Eduardo Imbiriba. Nos dois encontros falei sobre a contribuição de Zeno Veloso ao Direito de Família e Sucessões, especialmente a sua participação no processo de elaboração do Código Civil Brasileiro.
Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade
Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito
(EPD), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em
Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de
Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam),
diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia
Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso
Brasileiro (IDCLB).
Fonte: Conjur